terça-feira, 25 de outubro de 2011

O Boi de Máscaras de São Caetano de Odivelas

O boi de máscaras de São Caetano de Odivelas, que completa 70 anos em 2007 

As obras de Bruno de Menezes e Vicente Sales são "leituras obrigatórias" para quem busca referências bibliográficas sobre a brincadeira de boi no Pará, tanto por fazerem parte das poucas publicações sobre o tema, quanto pelo "selo de qualidade" impresso nelas. José Guilherme dos Santos Fernandes oferece a sua contribuição e a sua versão para as reflexões a respeito da brincadeira, com "O boi de máscaras: festa trabalho e memória na cultura popular do Boi Tinga de São Caetano de Odivelas, Pará". A obra é o resultado da sua tese de doutorado em Literatura Brasileira, defendida no ano de 2004, na Universidade Federal da Paraíba, e publicada este mês pela Editora da UFPA.

O pesquisador observou manifestações do gênero no Amazonas e no Maranhão, mas centralizou seu estudo no boi mais antigo de São Caetano de Odivelas, o Tinga, que completa 70 anos em 2007. Como metodologia, José Guilherme lançou mão da história oral, em especial da narrativa de quem preserva parte do patrimônio imaterial da cidade, os próprios brincantes. Entre eles, Seu Zé do Lode, de cerca de 80 anos, filho de um dos fundadores do Tinga, ao lado de Tito e Seu Murilo Chagas. Também foram interlocutores do pesquisador Baú, Lúcio, Seu Luci, Anilson, Mucá, Synthia, Fernanda e Seu Silvano, o maestro já falecido. Foi um reencontro também com sua própria história, diz José Guilherme, que é filho de odivelense. A essas vozes, se somaram a de autores como Antônio Gramsci, Poul Thompson, García Canclíni, Roberto da Matta, Tinhorão, Adorno e Walter Benjamin, Elias Xidieh e Zygmunt Bauman, e do músico bragantino Toni Soares.

O Tinga não é só o mais antigo boi em atividade no município, mas é também o único que se mantém regularmente, que não deixou de sair às ruas em nenhum ano, como acontece freqüentemente com outros bois. E, como costuma acontecer com muitas manifestações populares, afirma José Guilherme, ele igualmente deixou de ser apenas uma tradição de família para se tornar tradição de uma comunidade. O status seguinte, o de símbolo de identidade regional, é parte do objeto de análise de José Guilherme. Para ele, esse discurso tem sido difundido pelo Estado e é falacioso. Esse conceito de identidade, explica o pesquisador, pressupõe a existência de um gosto comum e generalizado. "Qualquer política pública tem que entender que isso é diverso, heterogêneo", afirma. Outro discurso, acrescenta ele, parte da indústria cultural, "que pode ser interessante, porque é uma forma de se ter uma renda local, mas pode ser perigoso, porque geralmente tende a homogeneizar o 'produto'". O terceiro discurso, diz José Guilherme, é construído pelos brincantes, em que a brincadeira aparece como um "grande pretexto para que se estabeleça uma vida comunitária, o que eu chamo de processo".

Orientadora de José Guilherme, Maria Ignez Novais Ayala diz na apresentação do livro que "trata-se, pois, de um trabalho de militância cultural em um país que não consegue visualizar, ainda, sua enorme diversidade cultural e as referências culturais de cada lugar, de cada município. (...) A visão oficial, que privilegia o Festival de Bois de Parintins ou os Bois de São Luís do Maranhão, ao nivelar tudo como se fosse uma coisa só, impede que se conheça a história e a riqueza de informações que cada manifestação guarda através de seus participantes". Ela acrescenta ainda que a publicação da tese é extremamente oportuna, já que "desde 2005 tem crescido no Brasil o interesse pelo patrimônio imaterial, a partir dos documentos da Unesco, que buscam criar salvaguardas para o conhecimento transmitido oralmente através de gerações em vários países".


Brincadeira é resultado de miscigenação cultural

O Boi Tinga é uma variação do boi-bumbá e só ocorre no Pará, segundo José Guilherme Fernandes. Ele não apresenta a tradicional narrativa de "Catirina e Pai Francisco", como a maioria dos outros, especialmente no Maranhão. O Tinga sofre influências de diferentes culturas, como a européia. O pesquisador cita a presença dos pierrôs e do próprio boi, como elementos "estrangeiros". Na Espanha, exemplifica, tem o chamado carnaval táurico. Elementos da cultura nordestina também podem ser percebidos no Tinga. Seu Silvano relatou a José Guilherme que o primeiro boi de São Caetano foi o Ribanceira, criado por um maranhense e no qual se usava "umas tabuinhas", espécie de matracas manipuladas por grupos de boi do Maranhão. Além de instrumentos tipicamente usados em manifestações populares, há instrumentos tradicionalmente presentes em manifestações da cultura classificada como erudita, como os metais trompete e sax. O mesmo Seu Silvano, até antes de falecer, era responsável por escrever partituras das músicas do grupo, como um maestro de clássicas orquestras. Muitos músicos do grupo são membros das bandas da cidade, assim como vários brincantes do boi são também dançarinos das quadrilhas juninas, o que, segundo o pesquisador, é uma demonstração do cruzamento de culturas que, mesmo resultando numa solução diferenciada, resguarda referências do passado.

O resultado da miscigenação é absorvido e elaborado pelas gerações seguintes, que se integram à brincadeira informal e espontaneamente, como é a dinâmica da manifestação. Maxico é quem cria as músicas do Tinga atualmente e, durante a quadra, ele e os músicos se encontram na casa do Seu Zé do Lode, de onde sai o boi. Ficam tocando até a hora que acharem conveniente para sair às ruas da cidade, em geral, no final da tarde. Saem e param em frente às casas que pediram, na véspera, para serem contempladas com a brincadeira. "As pessoas aprendem na hora, aprendem vendo. O boi sai e ao largo as crianças começam a 'ensaiar'. Futuramente elas saem embaixo do cabeçudo, do tripa, de pierrô...", narra. Essa espontaneidade, defende José Guilherme, é importante de ser preservada e não deve sofrer com imposições de horários e locais para apresentação.

Os participantes são quase todos homens, de diferentes faixas etárias. O pesquisador explica que marca de gênero é resultado de uma característica da brincadeira. "A brincadeira exigia maior esforço físico, por isso antes ela era mais masculina. Hoje as mulheres já começam a participar, a ponto de, em algumas apresentações, ao final, só restarem mulheres brincando, até porque os homens já estão quase todos cansados ou excedidos na bebida", ressalta José Guilherme. Outra explicação, acredita ele, deve ser a relação com a atividade que exercem os brincantes. Em geral são pescadores, que fazem da festa uma continuidade do seu ofício. São Caetano de Odivelas é uma cidade de cerca de 20 mil habitantes, às margens do rio Mojuim. É do rio e do mangue que cerca o município que boa parte da população tira seu sustento.


Livro apresenta crítica à postura de gestores e glossário a neófitos

José Guilherme critica o que chama de falta de equidade na distribuição de recursos públicos para financiar atividades e manifestações culturais. "Em São Caetano, tem o festival do caranguejo, no mês de dezembro. Em 2002, a prefeitura investiu R$60 mil para levar o grupo É o Tchan para a cidade e R$300 para o boi brincar o mês de junho inteiro. (...) Esse é o problema do discurso da identidade, ele oculta essas contradições", lamenta o pesquisador.

Além da análise, José Guilherme também registra no seu livro - recheado de declarações de brincantes e que teve a impressão patrocinada pelo Banco da Amazônia (Basa) - um breve glossário, importante para iniciar os "estrangeiros", como os exemplos a seguir:

Brincante: é toda pessoa que participa diretamente da manifestação, fantasiada e assumindo o papel de um dos personagens tradicionais.

Cabeçudo: o brincante veste, da cintura para cima, uma enorme cabeça, em formato humano, feita de talas e envolta em papel-machê; dele sai um paletó e as pernas.

Tripa: brincante que dança embaixo do boi, deixando apenas as pernas à mostra.

Pierrô: um dos personagens centrais. Tem grande semelhança com a clássica italiana, com largo macacão de cetim, com listras coloridas e um pano de costas, um capacete em estilo mourisco, feito de talas de madeira, papel jornal e celofane e a clássica máscara com enorme nariz.

Fonte: www.ufpa.br                                           Você encontra em: www.casagrandeesenzala.com

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